Manter uma loja alternativa no Brasil é algo de muita coragem e perseverança. Não apenas pelos altos impostos quando se é legalizada, quanto à se manter pra um público tão pequeno. Não à toa, muitas começam na informalidade e se mantém assim por anos até que possam pagar os registros de legalização. Nestes 10 anos que estou envolvida com moda alternativa, sei que mesmo quem se mantém informal nem sempre consegue sobreviver. Eu vi muita marca alternativa fechar, lojas que faziam suas próprias peças. O fechamento se dá por diversos motivos, desde pessoais, até falta de grana, passando por mal planejamento ou administração, má divulgação e inclusive peças que embora tinham boa ideia de modelagem e estilo, não tinham qualidade, seja no tecido ou no acabamento. No mundo de hoje, não dá pra oferecer produto meia boca, a concorrência é muito grande. A profissionalização, os estudos, ajudam a aprender sobre empreendedorismo, preço e qualidade, que são fundamentais pra manter uma marca funcionando. Criar e ter ideias maravilhosas, conseguir colocá-las em prática, chegar ao público e se manter, é um imenso desafio.
E quando se trata de grandes lojas alternativas estrangeiras? Porque elas fecham?
Um pouco difícil de saber já que não somos parte do grupo de convivência, mas é possível chegar à conclusões baseadas em pesquisas e análises do mercado atual.
O ano de 2014 não foi feliz pra duas grandes lojas estrangeiras conhecidas mundialmente, a alemã X-tra-X e a sueca Odium Clothing.
A XtraX Underground Fashion foi uma das primeiras lojas alternativas estrangeiras que conheci há mais de uma década. A loja tinha como público alvo a subcultura gótica em suas vertentes mais tradicionais, sua base era a venda de peças com sua marca própria, a Bat Attack, acessórios e calçados de outras marcas alternativas.
A XtraX Underground Fashion foi uma das primeiras lojas alternativas estrangeiras que conheci há mais de uma década. A loja tinha como público alvo a subcultura gótica em suas vertentes mais tradicionais, sua base era a venda de peças com sua marca própria, a Bat Attack, acessórios e calçados de outras marcas alternativas.
A XtraX foi fundada em 1991 e em 1995 já recebia clientes do mundo todo, dois anos depois, com 4 lojas na Alemanha, seu catálogo de roupas já continha mais de 200 páginas (dando uma ideia do tamanho da variedade de produtos da loja!), catálogos estes que eram produzidos mensalmente.
Os estilos góticos da Bat Attack.
Em 2011, por meio de amizades, acabei por conhecer o diretor de marketing da XtraX. Naquele ano a loja estava comemorando 20 anos (isso mesmo!) e lançou a coleção Doro Pesch "Love me in Black" (título de uma música dela). Falei sobre esse material, assim como a biografia e o aniversário da loja no post "20 anos da loja alemã XtraX".
Era super comum a XtraX patrocinar artistas, dentre as bandas que foram garotos propaganda estavam Craddle of Filth, The 69 Eyes e Dimmu Borgir. Na verdade a loja adorava patrocinar e se auto divulgar por todo tipo de bandas: góticas, de horror punk, psychobilly, deathrock, heavy metal... todo estilo tinha espaço na loja.
Como eu visitava o site com algum frequência, notei que nos últimos anos a quantidade de peças próprias foi diminuindo e a quantidade de peças de outras marcas alternativas foi aumentando. Assim como também houve uma espécie de "diminuição" de peças góticas em favor de peças mais "moda alternativa num geral".
Em abril deste ano a loja fechou.
A maior loja alemã (e talvez da Europa continental) de moda underground. Num país que tem uma cultura gótica e metal super estabelecida (a Alemanha hospeda o WGT e o Wacken), a loja teve seu estoque foi queimado em festivais e outras lojas parceiras.
A maior loja alemã (e talvez da Europa continental) de moda underground. Num país que tem uma cultura gótica e metal super estabelecida (a Alemanha hospeda o WGT e o Wacken), a loja teve seu estoque foi queimado em festivais e outras lojas parceiras.
O fim da XtraX foi o fim de uma era da história da moda alternativa.
Não é possível afirmar 100% o que fez a XtraX fechar, mas vejo vários fatores, como a crise econômica europeia recente, visto que seu público consumidor não era apenas alemão, mas europeu num geral. Mas porquê, dentre tantas lojas que poderiam fechar, foi justamente a maior da Europa?
Há outros possíveis motivos que eu levanto aqui:
- a decadência do interesse do público pela moda e cultura gótica tradicional em favor de estilos alternativos mais pulverizados. É notável que hoje existe um desinteresse pela estética gótica tradicional e pela inserção fiel na subcultura. A XtraX deu sinais que esse desinteresse pelo gótico tradicional estava caindo entre seu público consumidor quando colocou no seu catálogo marcas de moda alternativa que não eram parte desta estética.
- A intensa produção asiática e a prática de dumping* pela China, pode também ter acabado com a loja, já que sua marca, a Bat Attack, era produzida na Alemanha, ocorrendo assim uma impossibilidade de concorrer com os preços de marcas concorrentes que utilizavam produção asiática.
- A não atualização no tempo certo dos anseios e desejos do consumidor.
Não é regra, mas quando você está há 20 anos inserido numa subcultura e vive dentro dela, pode ser difícil enxergar além, talvez se crie um "mundinho próprio". Quando uma loja foca em um público específico e esse público diminui ou está buscando comprar em outras lojas, é preciso ter um jogo de cintura pra se atualizar com os anseios desse novo consumidor. Se não se atualiza, fica pra trás.
Já o fechamento da sueca Odium Clothing, acredito se encaixar nas mesmas causas da XtraX.
A Odium existia há 10 anos e era uma das mais conhecidas lojas online também de moda gótica tradicional! Sim, de novo a tal "moda gótica tradicional". A Odium também produzia suas próprias peças e tinha inclusive uma linha em vinil e verniz assim como vestidos de festa.
Foram imagens da Odium que usei quando fundei em 2006 a comunidade no orkut que daria origem à este blog. Desde 2005, a loja tinha como modelo alternativa oficial a Sanna Bernehed (xará!) também conhecida como Nephania. Duas outras modelos góticas também faziam direto o catálogo, a Elin Strigå e a Lenka Violetta.
As conclusões acima são análises pessoais, levantando pontos que lojas alternativas enfrentam como dificuldade ao longo de sua existência. E espero que façam o empresário brasileiro refletir sobre a maleficência do dumping* praticado na Ásia, que não afeta só a gente aqui não! Está sendo maléfico pra Europa também! Mas que empresário resiste à produzir suas peças na Ásia à preços baixos e depois revendê-las a um preço como se a peça tivesse sido fabricada em seu próprio país para ter uma margem de lucro maior? Ou seja, é um comportamento que os grandes empresário precisam mudar porque vira uma bola de neve que derruba até economias de países que pareciam "seguros".
*Dumping é uma prática em que China vende seus produtos por preços super baixos até eliminar os concorrentes. Quando os concorrentes fecham por não conseguir competir, a China fica com o monopólio do mercado e eleva os preços até o valor que bem entender.
Eu não afirmo que estilo gótico mais tradicional da subcultura, está sumido. É claro que ainda existem diversos trad goths em torno desse mundo, mas não tantos quanto antes. Eu mesma não vejo na rua góticas em seus modelitos tradicionais há muito tempo...
É fato também que a moda gótica atual é um apanhado de tendências e misturas com a estética de outras subculturas. Fica até difícil classificar.
A fragmentação das subculturas, algo tão adorado por muitos, trás esse lado negativo: a decadência ou fim mesmo que temporário de uma estética e o fechamento de marcas.
O caso Lippy (Drew Bernstein)
Neste ano, também tivemos uma das mais tristes perdas na cena alternativa: o suicídio de Drew Bernstein, mais conhecido Lippy, figura lendária na cena alternativa americana. O suicídio de Drew foi bem próximo ao de Robin Williams e levantou entre nós do MdS, o questionamento sobre o tão pouco debatido é o tema da depressão, ainda considerado um assunto tabu para nossa sociedade.
Lippy ao longo dos anos...
Lippy emergiu da cena Hollywoodiana do fim dos anos 70. Frequentava tanto as cenas glam rock quanto deathrock. Usava make-up branco, botas imensas, colar de caveira e trajes negros. Com idéias na cabeça, aos 21 anos, já na década de 1980, perguntou à um lojista se ele compraria leggings estampadas com caveira, o lojista topou a experiência. Drew foi pra garagem de sua casa e criou uma estampa de caveira junto à um punhal. Sem a mínima noção de moda, desmontou um par de leggings pra ver a modelagem e o tecido que precisaria. Comprou o suficiente pra fazer 200 peças e, se a venda não desse certo, ele mesmo faria uso das mesmas. As calças foram um sucesso!
Com espírito empreendedor, Lippy percebeu que Londres estava usando muito vinil preto e passou a criar, em Los Angeles, uma jaqueta de motoqueiro do mesmo material. A seguir, percebeu que as pessoas queriam jeans com stretch e lá foi ele criar os seus. Após 3 anos, deixou a garagem de casa e abriu duas lojas em LA, chamadas "Lip Service" sendo uma em Melrose outra em Hollywood Boulevard. E foi assim que a banda Guns 'N' Roses descobriu a loja e uma massa de roqueiros, góticos e punks americanos viraram clientes. Com o passar das décadas, a loja criou submarcas, mas seu legging de caveira com a adaga, nunca saiu de linha.
As icônicas leggings com adaga e caveira nunca saíram de linha.
Com espírito empreendedor, Lippy percebeu que Londres estava usando muito vinil preto e passou a criar, em Los Angeles, uma jaqueta de motoqueiro do mesmo material. A seguir, percebeu que as pessoas queriam jeans com stretch e lá foi ele criar os seus. Após 3 anos, deixou a garagem de casa e abriu duas lojas em LA, chamadas "Lip Service" sendo uma em Melrose outra em Hollywood Boulevard. E foi assim que a banda Guns 'N' Roses descobriu a loja e uma massa de roqueiros, góticos e punks americanos viraram clientes. Com o passar das décadas, a loja criou submarcas, mas seu legging de caveira com a adaga, nunca saiu de linha.
É impossível saber ao certo, o que levou ao suicídio de um empresário tão criativo e visionário como Lippy. Mas soube por fontes confiáveis que anos atrás, devido à problemas financeiros, ele vendeu a Lip Service e isso o entristeceu muito, mesmo se mantendo como co-proprietário. Deve ser muito difícil ver algo que se criou e que se fez crescer, decaindo. Não duvido que também nos EUA, as lojas alternativas estejam sofrendo com a crise econômica e com o reflexo do dumping, pois basta uma breve olhada na etiqueta de algumas lojas alternativas gringas e leremos "made in China".
Independente do sucesso de sua empresa, Lippy se manteve fiel até o fim à comunidade underground de onde ele veio. Ele não bebia nem usava drogas, sendo um dos primeiros straight edge. Suas lojas e empresas ainda são formadas por roqueiros, góticos e punks.
A XtraX e a Odium, são exemplos que não queremos como
futuro de lojas alternativas, mas ao mesmo tempo são exemplos que
devem ser levados em conta de como desde já criar um plano B, C, para
se adequar às mudanças de economia e do comportamento consumidor.
Já Lippy nos mostra que ter uma marca alternativa é trabalhar com uma paixão, com algo que se ama, algo que é parte de si mesmo.
É estranho quando lojas que você admirava, que fizeram parte das referências deste blog, deixam de existir. É como se você também fosse parte do sonho alternativo de alguém e não desejasse nunca que um dia um sonho chegasse ao fim.
Terminamos com uma frase e desenho do Lippy, feitos no muro do escritório da loja, que define o que é trabalhar com Moda Alternativa: "Não é um trabalho... é uma aventura!"
Terminamos com uma frase e desenho do Lippy, feitos no muro do escritório da loja, que define o que é trabalhar com Moda Alternativa: "Não é um trabalho... é uma aventura!"
Nossa, eu ainda não sabia de algumas dessas perdas! Levei um susto :(
ResponderExcluirAo mesmo tempo em que acho triste que as pessoas priorizem tanto cópias de baixa qualidade em vez de produtos autorais acessíveis - porque os inacessíveis dá pra entender, claro - muitas lojas alternativas não trazem novidades ou se adaptam. É comum ver exatamente os mesmos modelos, e só eles, por anos no catálogo das lojas, ou modelagens que não evoluem com o tempo. Não seria questão de perder a característica, mas buscar se aprimorar, não se acomodar. Não falo das marcas citadas, mas vejo muitas assim pela internet.
Preço baixo é sempre um atrativo, vivemos numa era de fast fashion então as pessoas meio que não se importam de pagar pouco por algo que não vai durar muito....
ExcluirTalvez as lojas alternativas não tragam muitas novidades justamente pela dificuldade de se manterem, a Nívia da Dark Fashion falou algo sobre isso numa entrevista aqui pro blog.
Particularmente vejo muita cópia de baixa qualidade e muita coisa igual justamente de peças feitas na Ásia revendidas em lojas alts. Claro que existem lojas alternativas que tem suas peças confeccionadas na Ásia por causa do preço, mas conseguem manter um estilo e design.
É um assunto bem complicado, cheio de detalhes, prós e contras, mas é preciso falar dele.
Abraço!
Nossa,fiquei bem triste com essa notícia,a X-Trax sem dúvida foi um marco na moda alternativa,nunca pensei que chegaria ao fim,pelo tempo de mercado e por estar como vc disse em um país onde essa cultura.acredito ser a mais forte do mundo.
ResponderExcluirOs pontos todos que vc citou,realmente são uma verdade e eu faço parte dos que não conseguiram sobreviver financeiramente,infelizmente.
Sim, bem triste mesmo! Nunca pensei que veria o fim da XtraX!!
ExcluirÉ muito difícil mesmo sobreviver no meio alternativo, muita coisa influencia a sobrevivência de uma marca.
Conhecia bem as lojas citadas e concordo com o que você escreveu. Ultimamente tenho percebido que as mercadorias asiáticas estão bombando muito e a qualidade, a marca e a história vão se perdendo ao longo do tempo.
ResponderExcluirSeus textos sempre muito bem escritos, é sempre um prazer ler tudo =)
Beijos!
http://www.triboalternativa.com.br
A mercadoria asiática faz até peça em estilo alternativo pra ter ideia! Eles querem lucrar com tudo!!
ExcluirA história se perder é um fato muito triste mesmo :(
Obrigada Carolina, Bjss!
AI, NAO!, Mentira que a xtrax fechou :(
ResponderExcluirPoxa, eu nem a conhecia, procurei esses dias e achei ela na net, vou passe em berlin e queria ir na loja deles pra renovar o guarda-roupas haha
Ai que triste :(
Então, não me resta outra coisa a não ser te pedir uma dica, caso você tenha haha
Sabe de alguma loja virtual que tenha loja física em Berlin? E até em Estocolmo mesmo, irei passar por lá... Preciso renovar o guarda-roupas urgente, e comprar meu vestido de casamento hahaha
Obrigada anyway :)
Mellanye, parte do acervo da XtraX tá na emp.de (tem em Leipzig, Essen e outras 2 cidades que não lembro mas tem no site) e em Estocolmo tem a shock.se
ExcluirEspero ter ajudado ;)
Caramba lembro quando vi sobre a marca aqui no blog, e de como amei os catálogos. Depressão é algo sério, as pessoas ainda hoje não consideram as consequências dessa doença, muito triste.
ResponderExcluirSim, bem triste mesmo, pena que ainda é considerado um tabu falar dela e ainda é banalizada pelas famílias de alguns doentes :(
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